Faz parte do ritual de qualquer greve ouvir sindicalistas dizerem que há a maior adesão de sempre. Há dois anos, houve até quem falasse numa adesão superior a 100%.
O Governo marcou uma conferência de imprensa para os telejornais do almoço. Vão dizer que a greve está a ter um impacto limitado e que a maioria dos portugueses está a trabalhar normalmente, que há hospitais a funcionar e transportes a circular. Pelas experiências passadas, devem dizer que a greve está a ter uma adesão de 10% ou 15%. Entretanto, no aeroporto:
1 - No próximo ano, a pensão de 200 euros que a minha avó recebe vai ficar congelada e todas as contas que recebe em casa vão aumentar, com a subida do IVA e das taxas de serviços públicos. A reforma do meu pai vai diminuir algumas dezenas de euros e a comparticipação da ADSE para comprar medicamentos vai baixar. O meu ordenado vai levar um novo rombo por causa do aumento do IRS e parte deste aumento generalizado de impostos vai financiar os vencimentos de personalidades como Jorge Coelho, da Mota-Engil, através dos pagamentos que o Estado vai ter de fazer a empresas de construção civil, ou Armando Vara, da Camargo Corrêa, através do cimento que é necessário comprar para fazer auto-estradas. E isto numa família que não será certamente das mais afectadas com o que aí vem.
2 - O país está com um problema grave de endividamento, consequência directa de anos de má gestão dos dinheiros públicos, canalizados para obras públicas e outros investimentos de interesse duvidoso, à custa da regressão de salários, de apoios sociais e da degradação de serviços públicos. Perante esta situação, alguns alemães pensam que o melhor caminho é reduzir o défice, mas como todos os países estão a fazer isso ao mesmo tempo ninguém consegue consumir, exportar e ter crescimento económico: os problemas só se agravam. Há um risco real de sermos forçados a sair do euro. Isto significa que quem não transferir o dinheiro que tem em depósitos portugueses para uma conta na Alemanha, antes de isso acontecer, vai ficar, de um momento para o outro, com metade das poupanças: no mesmo dia em que introduzirem de novo o escudo, a moeda desvaloriza automaticamente face ao euro. Mas as dívidas ao exterior continuam a ser em euros e nós temos escudos; ficamos a dever a dobrar. Muitas empresas e bancos não conseguem pagar e vão à falência. A inflação pode facilmente atingir 20 ou 30%, e não seria de admirar que o mesmo acontecesse à taxa de desemprego. Um dia de greve anima a malta antes da tragédia.
3 - Quando comecei a trabalhar, estive cinco anos a recibos verdes. Neste momento, e segundo números oficiais que devem pecar por defeito, há mais de 450 mil trabalhadores com este vínculo laboral. Não têm subsídio de Natal, aumentos anuais, subsídio de maternidade, doença ou desemprego.
4 - Incomoda-me que os argumentos contra quem faz greve sejam sempre, sempre os mesmos, independentemente da greve e da situação que a origina. São os preguiçosos da Função Pública que não querem trabalhar; os protestos não conseguem provocar mudanças e por isso são inúteis e até prejudicam o país num momento de crise. Seria engraçado que este raciocínio tivesse sido seguido pelos trabalhadores na Revolução Industrial, há 200 anos: ninguém tinha feito nada contra jornadas de trabalho de 16 horas por dia, sete dias por semana, que incluíam crianças a partir dos seis anos. Incomoda-me que ninguém nos jornais e nas televisões diga que no call-center da PT e na distribuição da EDP - as maiores empresas privadas em Portugal - houve uma adesão superior a 75%. Que ninguém chame a atenção para o facto de que quem faz greve perde um dia de salário e que os trabalhadores que cumprem serviços mínimos não se importam de trabalhar todo o dia e ficar sem ordenado porque fazem questão de formalizar a adesão à greve.
5 - Apetecia-me começar o dia a ouvir Rage Against the Machine e a escrever no blogue.
Há coisas que devem fazer-se pelo menos uma vez na vida. Na impossibilidade de ser uma semana num iate na Côte d'Azur com a Salma Hayek e a Monica Bellucci a lutarem para ver qual delas conseguiria fazer-me mais massagens tailandesas, é perfeitamente aceitável que seja comprar uma garrafa de vinho de mais de 200 euros.